quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Dr. Julio, ''O Drama das Secas'' e ''O Retorno''

Rodolfo Nanni*
No dia 29 de abril de 1959, o dr. Julio de Mesquita Filho, diretor de O Estado de S. Paulo, escreveu na seção Notas & Informações um artigo sob o título O drama nordestino. Esse artigo tinha relação direta com o meu filme O Drama das Secas, a que o dr. Julio assistira durante a entrega dos Prêmios Saci, concedidos anualmente pelo jornal a diversas atividades culturais.

O Drama das Secas foi realizado com pequena verba conseguida por Josué de Castro, então presidente da Associação Mundial de Luta Contra a Fome (Ascofam). Josué acreditava, como eu, na importância de se fazer um filme que abordasse a questão da fome no Nordeste. Era o ano de 1958 e o filme registrou o grande êxodo que as secas daquele ano haviam provocado.

Dr. Júlio inicia o seu artigo citando A Bagaceira, de José Lins do Rego, e O Quinze, de Rachel de Queiroz, "duas grandes obras literárias onde o Nordeste perpassa num trágico desfile de cenas dolorosas. Mas, pelo seu alto valor artístico, impõem-se mais como marcos miliares da nossa história literária do que como documentos flagrantes e reais do drama nordestino".

E prossegue: "Vem isto a propósito de um documentário cinematográfico premiado e exibido anteontem no festival do ?Saci?. Trata-se de ?O Drama das Secas?, do sr. Rodolfo Nanni. Raro ou nunca nos foi dado assistir a uma tão dolorosa sucessão de quadros sobre essa luta desigual do homem brasileiro contra a extrema agressividade do solo e clima do Nordeste. Tudo o que havíamos lido e consultado até hoje, acerca desse magno problema, nos levara irresistivelmente para o caminho de soluções mais sentimentais do que práticas. Pungia-nos sobretudo a fome e o abandono a que eram votadas essas legiões de patrícios, eternamente empenhados na luta com a hostilidade do meio (....). Anteontem, porém, à medida que o documentário do sr. Rodolfo Nanni ia desenrolando a nossos olhos as cenas dantescas que a sua câmera fixara nos escaldantes sertões do Nordeste, vimo-nos insensivelmente levados a perguntar-nos se não estarão redondamente enganados os que, traçando planos grandiosos para a solução do problema, deixam de lado um dos seus aspectos principais: o estabelecimento de um estudo preliminar por meio do qual se certifiquem da praticabilidade ou impraticabilidade dos planos."

Relatos sobre as secas são conhecidos desde o século 16 (Fernão Cardim ressalta, em suas crônicas, a situação dos índios do sertão, os quais se abrigaram junto aos brancos e aí ficaram, "por sua ou sem sua vontade"). Mais recentemente, a seca de 1932, no Ceará, fez com que o governo do Estado criasse sete campos de concentração - chamados de currais - nos quais confinou as populações de retirantes que chegavam a Fortaleza. Marco Antônio Villa, em seu competentíssimo livro Vida e Morte no Sertão, relata a morte de 3 milhões de pessoas pela fome, entre 1825 e 1983.

A partir dos anos 1950, grande número de nordestinos começou a migrar para o Sudeste, a fim de trabalharem como operários, sobretudo na construção civil. Impossibilitados de plantar alimentos em suas terras, vieram plantar prédios na cidade de São Paulo, abandonando solos férteis, tornados improdutivos apenas pela má administração dos recursos hídricos.

Para realizar O Retorno, filmado 50 anos depois de O Drama das Secas, rodei 5 mil quilômetros pelas regiões do Agreste e do Sertão nordestinos, repetindo, praticamente, o percurso anterior. Desta vez, dei prioridade a retratar a situação das famílias dos pequenos lavradores pernambucanos, num roteiro que incluía o interior dos municípios de Garanhuns, Águas Belas, Itaíba, Manari, Inajá, Tacaratu, Caraibeiras, Ibimirim, Serra Talhada e Pesqueira.

Estava certo, para mim, que não desejava realizar um filme de simples denúncia.

O que me norteou foi a possibilidade de revelar, mais uma vez, o retrato de uma situação que nenhum de nós, brasileiros, deveria aceitar.

Evitei entrar em questões políticas. Mas é urgente a criação de uma ação que possa corrigir essa inadmissível situação.

Encontrei, agora, cidades mais desenvolvidas, mas em desacerto com o campo.

Filmei açudes imensos, grandes mares de água doce que se fecham em si mesmos. Água à qual os pequenos lavradores não têm acesso. Não foram construídos sistemas de irrigação nem fornecidas possibilidades para o financiamento e a compra de bombas que possam levar a água até eles. Meio século depois, em muitos sítios ainda se andam quilômetros para buscar água numa cacimba, o pote à cabeça. Meio século depois, ainda se vive, em parte, da caça e o pouco que se consegue plantar servirá apenas para o consumo doméstico. Meio século depois, mulheres dão à luz seus filhos sem assistência adequada. Meio século depois, crianças e jovens sonham com um futuro que deverá passar necessariamente pela educação, suprida - em muitos casos - apenas pela boa vontade de um adulto sem formação específica. Meio século depois, tempo em que o mundo experimentou avanços tecnológicos e científicos de grande magnitude, há populações que, a uma hora das cidades que compõem os seus municípios, são obrigadas a viver como em tempos coloniais.

Como já dizia Josué de Castro, a seca não é o principal problema do Sertão, uma vez que o homem poderá conviver com ela, desde que convenientemente administrada. E, como dizia o dr. Júlio, há que se traçar planos e testar a sua praticabilidade.

Meio século depois, eu me pergunto como será o futuro dessas regiões, nos próximos 50 anos, considerando-se as mudanças climáticas que atingirão ainda mais duramente as áreas de seca. O que estamos ainda esperando?

*Rodolfo Nanni é cineasta

Quarta-Feira, 20 de Agosto de 2008, O Estado de S. Paulo

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